Para que possamos entender o ápice de ascensão bolsonarista e de setores ultraconservadores em nosso país, e como a entrada no ativismo político deste campo impactou profundamente nas agendas de gênero, sexualidade, direitos humanos e políticas sobre drogas, é importante realizar um retrospecto na história do Brasil.

O processo de redemocratização é um período que certamente precisa ser lembrado nesta investigação, pois foi o momento de consolidação de políticas públicas de direitos humanos, para mulheres e pessoas LGBTQIA+, pessoas negras e pessoas que usam drogas. Segundo Correia e Kalil (2020), tais políticas evoluíram em paralelo ao processo de redemocratização e foram uma resposta da mobilização ampla de setores dos movimentos sociais, que contestaram a ditadura militar imprimindo uma nova gramática dos direitos humanos incorporada nas políticas de Estado.

Este movimento contestatório no Brasil reuniu uma complexidade de organizações políticas que lutavam pelos direitos das mulheres, direitos reprodutivos, da sexualidade e da saúde. É no momento de abertura democrática que irrompe no Brasil e no mundo a epidemia de HIV/AIDS, inaugurando também a operação política ativista que reuniu movimentos pela diversidade sexual, movimentos de pessoas vivendo com AIDS, movimento sanitarista (em defesa do SUS e da saúde pública, gratuita e de qualidade) e, não menos importante, os movimentos ligados à redução de danos. Segundo Correia e Kalil (2020), é nesse momento que as questões de gênero e sexualidade abrem espaços novos na formulação e implementação da política pública a partir da participação de diferentes sujeitos políticos que passaram a ocupar a arena política democrática. 

Os movimentos feministas, LGBTQIA+, movimento negro, além dos movimentos sanitaristas, de pessoas vivendo com HIV e o movimento antimanicomial foram os impulsionadores de uma democracia realmente participativa, via mobilização e participação cidadã na construção das políticas públicas. Impulsionaram, dessa forma, verdadeiras transformações de sentidos e práticas no conjunto da sociedade brasileira. 

Foi a partir dos anos 2000 que as reivindicações políticas desses movimentos sociais tiveram uma inscrição nas estruturas do Estado, em formato de políticas públicas. São exemplos disso a formalização da Lei Maria da Penha — com a implementação de toda uma rede de proteção à mulher — e as medidas legislativas que proíbem a discriminação a pessoas LGBTQIA+ (Correia e Kalil, 2020).

A política sobre drogas também sofre alterações com a aprovação da lei 11.343, de 2006, que diferencia usuário e traficante e cria de maneira inovadora toda uma rede de atenção à pessoa que usa drogas, tendo em vista que anteriormente tínhamos muitas medidas de repressão e poucas iniciativas no campo da prevenção, tratamento e cuidados. É neste momento que a redução de riscos e danos entra na política de atenção a pessoas que usam drogas, como uma forma de cuidado alinhada aos direitos humanos e à autonomia do sujeito. 

A lei 10.216 é um marco da reivindicação do movimento da luta antimanicomial, incorporando a perspectiva da reforma psiquiátrica e da desmanicomialização para as políticas de saúde mental. Serviços substitutivos aos antigos manicômios implementam no país um modo de cuidado que garanta os direitos fundamentais e as necessidades de quem acessa a política pública. Entre os anos de 2004 e 2012, no Brasil, aconteceu um conjunto de conferências nacionais: sobre mulheres, população LGBTQIA+, de educação, de saúde mental, saúde pública e assistência social. Os conselhos nacionais voltados a estes setores e públicos experimentaram a ampliação da participação da população diretamente afetada pela política.

No ano de 2012, formalizam-se as políticas de ações afirmativas, promovendo a inserção de jovens negros e negras na universidade pública. A entrada de um governo de esquerda na conjuntura política daquela época significou um maior diálogo entre movimentos sociais e poder público, instaurando uma narrativa de ampliação do acesso a direitos a populações historicamente esquecidas pelas políticas de proteção e defesa de direitos. Podemos aqui avaliar que o conservadorismo brasileiro cresce a partir do processo de maior visibilidade da agenda política dos movimentos sociais. A articulação de mulheres, de LGBTQIA+ e do movimento negro ajudou a dialogar com o conjunto da sociedade noções de igualdade, reparação, diversidade, gênero, desigualdade e diferença. O movimento social é também um educador e formador de novas práticas (Nilma Lino, 2017) Foram movimentos que revolucionaram entendimentos com relação a opressões sociais, criando tecnologias de enfrentamento e inscrição na dinâmica do Estado brasileiro.

No dossiê “As múltiplas faces do conservadorismo brasileiro“, Rosana Aquino e Tatiana Maia apresentam uma análise sobre o avanço do movimento conservador no Brasil, recorrendo aos conceitos de nostalgia e melancolia para caracterizar este campo e para se referir a um debate nas humanidades sobre subjetividade política. “O nostálgico, confrontando-se com a irreversibilidade do tempo, deseja o que não existe mais em um presente em transformação. O melancólico não se desprende da experiência da perda e confronta-se com os limites de sua existência, associando sua perda à incerteza em relação ao futuro”, escrevem as autoras.

Para elas, na atualidade, países como o nosso, em crise, dão-nos  um exemplo vivo de como a nostalgia, a melancolia e o nacionalismo revisionado ajudam a compor a nossa esfera conservadora. A nostalgia de um Brasil do passado e a melancolia à brasileira se expressam na negação das identidades políticas e culturais forjadas na luta por direitos e representação, como os movimentos LGBTQIA+, negro e feminista, que se organizaram na busca de uma maior equidade no reconhecimento. Demandam assim uma mudança no status quo político e social brasileiro, por meio de uma abertura institucional democrática que passe então a reconhecer, contemplar e proteger a diversidade de expressões e projetos de vida presentes no país. 

Gonzalez (1984) já nos ensina que a negação compõe a gramática da neurose cultural brasileira. Para ela, a negação histórica do racismo seria um sintoma dessa neurose. Isso é: compõem a nossa formação cultural dinâmicas de negação, escamoteamento, invisibilização de questões-chave para entender processos históricos de reprodução de desigualdades. O conservador nostálgico, evocando o passado, nega a reivindicação de movimentos sociais do presente, enquanto o melancólico nega as identidades que são forjadas em processos de luta e, dessa forma, a negação segue como herança cultural sustentada pelo campo político conservador.

Não é possível entender a emergência do campo conservador bolsonarista sem analisar os debates e as transformações sociais que foram geradas a partir da atuação do movimento de mulheres, de pessoas LGBTQIA+ e, sobretudo, de pessoas negras. A disputa por novos conceitos, a visibilização de estruturas históricas desiguais e a construção, via sociedade civil, de caminhos democráticos a partir das políticas públicas geraram uma reação e a entrada de grupos de direita conservadores na militância política. Este é um fenômeno que precisa ser documentado como forma de registrar a memória política brasileira.


8. CORRÊA, Sonia y Isabela Kalil (2020). Políticas antigénero na América Latina: Brasil ¿La catástrofe perfecta? Observatorio de Sexualidad y Política. Disponível em: https://sxpolitics.org/GPAL/uploads/Ebook-Brasil%2020200204.pdf

9. Redução de Danos é uma estratégia de saúde pública e um paradigma que norteia ações destinadas aos cuidados de usuários e usuárias de drogas, baseada na ideia do acesso a direitos a pessoas que usam drogas. A redução de danos estabelece um modo de cuidar que parte do princípio da autonomia e da construção de saberes. Na redução de danos, o conhecimento do sujeito, sua história e seus modos de consumo são ferramentas bases para se construir estratégias de cuidado “com” e não “para”. São fundamentos éticos da redução de danos a participação da pessoa que usa drogas nas estratégias de cuidado e na elaboração das políticas. O surgimento da redução de danos no mundo está relacionado com a organização política de movimentos sociais de pessoas usuárias de drogas, sendo que no Brasil também o seu surgimento esteve ligado em diversos estados brasileiros a associações de pessoas usuárias de drogas.

10. A Lei Maria da Penha, aprovada em 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm 

11. Os critérios de definição de usuário e traficante ainda não foram descritos na lei, o que na realidade brasileira se converte em um processo de distinção por raça e classe. Dessa forma o Brasil tem encarcerado com o crime de tráfico de drogas jovens negros, réus primários, sem participação com o mercado ilícito. Trabalhos como o de Luciana Boiteux (2006) apresentam com precisão essa questão.

12. GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.

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