Resultados – Análise no Poder Executivo

Nesta seção, nosso objetivo é analisar medidas normativas, decretos, vetos presidenciais e declarações de representantes do atual governo durante os três anos da sua gestão (2019 até 2021). Realizamos o acompanhamento sistemático, ao longo desses três anos, buscando elementos para entender uma certa “governamentalidade” ou a racionalidade política que foi produzida ao longo dos primeiros anos de governo. O esforço caminha no sentido de trazer pistas para entender, tanto a partir do discurso quanto das operações e articulações políticas, quais modificações e transformações afetaram as políticas públicas nesse período.

Para essa análise achamos conveniente trazer não apenas o que entendemos ser movimentos específicos nas agendas de gênero, sexualidade, direitos humanos e políticas sobre drogas. As movimentações no campo da cultura, das políticas sociais, direito à participação política e na educação também foram evocadas para compor essa análise. Não pretendemos com isso registrar todas as movimentações políticas, mas apenas aquelas que achamos relevantes para o propósito de nos apresentar um diagnóstico em um olhar panorâmico do que aconteceu nesse período. 

A partir da análise documental, é possível entender o projeto político que tem constituído o Estado brasileiro como um Estado neoliberal, uma vez alinhado com as políticas e lógicas do mercado, diminuindo a função do governo de proteger e promover o bem-estar de toda a sua população, sem a criação de medidas discriminatórias. Podemos afirmar que as políticas públicas imprimem uma linguagem, interferem na cultura e produzem mecanismos de disputa de conceitos importantes para a nossa sociedade. Os documentos analisados nos mostram a coalizão de uma robusta agenda antigênero, antidireitos, antiLGBTQIA+, apresentando retrocessos na saúde, redes de cuidados a pessoas que usam drogas, política nacional de HIV/Aids, programas de educação em saúde e prevenção e o desmonte de espaços de participação na elaboração de políticas públicas como os conselhos nacionais.

O primeiro ano de governo foi marcado pela continuidade do governo de Michel Temer, no desmantelamento do Estado de bem-estar social para a adesão ao pacto neoliberal (Malheiro, 2020), militarizado e reafirmando o projeto político de cristãos conservadores com o fundamentalismo evangélico. O ano de 2019 foi marcado por intensas transformações em todos os seus meses. O que inclui: a questão do porte de armas; a destituição da sociedade civil dos conselhos (Conselho de Drogas, LGBT’S, de Mulheres); a mudança da política sobre drogas no sentido de centralizar o cuidado em instituições de cunho religioso estabelecendo a exigência da abstinência para entrada no tratamento, além da retirada da redução de danos do texto da política oficial; as censuras aos editais de cultura que apresentem a agenda de gênero e sexualidade; extinção de secretaria e ministérios importantes; o financiamento de comunidades terapêuticas e centros de tratamento privado; o veto às campanhas sobre HIV/Aids voltadas às pessoas LGBTQIA+; e a indicação de um juiz evangélico ao cargo de procurador-geral da República. É necessário destacar que a agenda conservadora se fez presente no âmbito das articulações do Executivo, seja na reestruturação dos seus ministérios e secretarias ou na nomeação de militares e representações do fundamentalismo religioso à frente de agendas importantes para o campo do gênero, sexualidade e direitos humanos. 

Duas das promessas de campanha de Jair Bolsonaro, a questão do porte de armas e da mudança na política sobre drogas, constituem um outro marco importante para o entendimento da racionalidade política dessa gestão. O recrudescimento do Estado militarizado foi uma marca impressa já no primeiro ano de governo. Pautado em processos de “desdemocratização”, o raciocínio do Estado produz o afastamento da sociedade civil de instância de participação política, a partir de decretos presidenciais que substituem conselhos nacionais por comitês técnicos formados com aliados do governo. No lugar de uma ditadura escancarada, anunciada e nomeada, opta-se por utilizar mecanismos institucionais para transformar as funções do Estado, agora mais punitivo e repressor.

O financiamento de comunidades terapêuticas como eixos centrais de amparo e o redirecionamento do cuidado para a exigência da abstinência para o acesso à política pública é um retrocesso a noções de universalidade e equidade que apregoam o SUS. Enquanto Estado, é importante ofertar uma série de modalidades de cuidado, prevenção e tratamento que se adapte a cada realidade: exigir que o sujeito esteja abstinente para o começo do tratamento é um dos pontos que fazem fracassar modelos que atuam no binômio abstinência/internação. Em 2019, a nova política sobre drogas foi anunciada com a retirada do termo redução de danos e o fluxo de cuidado centrado em serviços de base religiosa. 

O campo do cuidado à pessoa que usa drogas foi atravessado pela aprovação da antiga PL de Osmar Terra (PLC nº 37/2013), lançamento de editais para financiamentos de comunidades terapêuticas, decreto que implementa a nova política sobre drogas, a autorização de internação de adolescentes em comunidades terapêuticas e a redação de um modelo de atenção centrado no cuidado religioso. Podemos dizer que ao lado da pauta de gênero e sexualidade, a agenda de políticas sobre drogas foi a mais afetada em todos os três anos de gestão — à medida em que em todos os anos há alguma modificação, decreto, edital de financiamento que tem a finalidade de imprimir o endurecimento das políticas sobre drogas no Brasil.

O desmonte do Mecanismo de Combate à Tortura, realizado nos últimos três anos foi também uma operação que visou reestruturar as noções de direitos humanos, proteção, agendas de atuação em situações de violações de direitos. O Mecanismo tem tido uma atuação importante em diversos casos de tortura: dentro do sistema prisional, mas também nas inúmeras comunidades terapêuticas que estavam sendo denunciadas a partir da atuação da sociedade civil no Mecanismo. Um presidente, que quando deputado, no momento da votação do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff homenageou um torturador da ditadura, imprime a sua identidade neste governo que, ao não fortalecer instrumentos como o mecanismo, não ajuda a combater a tortura e outras formas de violência de Estado, criando assim um ambiente de normalização dessas violências.

Declarações do presidente e de representantes de Estado durante discursos ou em postagens nas redes sociais ajudaram a disseminar um espaço confortável para a ampliação do discurso de ódio contra pessoas LGBTQIA+,  e mulheres. Tais discursos se convertem em práticas de violência contra essa população. Não à toa, todos os levantamentos feitos sobre violência no país destacam um aumento, nos últimos três anos de episódios de violência doméstica, violência contra mulheres trans e travestis, feminicídios, violência política a mulheres cis, trans e travestis. Neste primeiro ano, são importantes também as movimentações em torno da pauta do aborto e as declarações da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, sobre as políticas de Estado voltadas para este assunto. Em audiência pública, propôs que o Estado brasileiro seja o provedor de uma criança gestada a partir de uma violência sexual. Diversos foram os posicionamentos públicos da ministra com relação ao aborto em casos de violência sexual, colocando mais uma vez a agenda religiosa na arena política. Soma-se a isto o fato de que, no final de 2019, o governo só gastou 4,3% de um orçamento de R$ 2,6 milhões para políticas públicas de proteção a pessoas LGBTQIA+ previstas no escopo de trabalho da pasta chefiada por Alves. A consequência disso são serviços sucateados, programas interrompidos, fluxos de proteção e defesa dos direitos falhos e registros de situações de violência e morte subnotificados pelo Estado.

  1. FOUCAULT, M. Segurança, território e população. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  2. O atual regime de controle de substâncias, em grande medida, não distingue o uso do abuso ou da dependência de drogas. Proíbe todo consumo, e adota a punição como principal estratégia para desincentivar esse comportamento. Em muitos países, usuários de drogas estão sujeitos a penas de prisão. Em outros, o consumo de drogas ou ações correlatas, como o porte ou a posse de drogas para consumo, são consideradas crimes, punidas com multas ou outras sanções. Nesta subseção, apresentamos seis tipos de reforma: i) a despenalização da cannabis; ii) e de todas as drogas; iii) a descriminalização da cannabis e iv) de todas as drogas; v) o cultivo da cannabis para uso próprio e; vi) a adoção de critérios objetivos de quantidade para diferenciar usuários de traficantes. INSTITUTO IGARAPÉ, Reforma da Política de Drogas nas Américas. Disponível em: https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2020/07/2020-07-20-AE-46_Reforma-em-politica-de-drogas.pdf.
  3. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; Ministério da Cidadania; Ministério da Educação; Ministério da Saúde; Ministério da Justiça e Segurança Pública.
  4. MALHEIRO, L. S. B.; LIMA, D. D. Questões atuais sobre Políticas de Drogas no Brasil: a comunidade terapêutica e a atenção à saúde. A atenção integral ao consumo e aos consumidores de psicoativos: conexões interdisciplinares. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2018. 551p.
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