Introdução

RELATÓRIO DA ESCOLA NACIONAL DE GÊNERO E SEXUALIDADE:

PANORAMA DAS AGENDAS DE GÊNERO, SEXUALIDADE, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS SOBRE DROGAS ENTRE 2018 E 2021. 1

Este relatório fundamenta a criação e estruturação de uma Escola Nacional de Gênero e Sexualidade, através de uma plataforma virtual que sistematiza produções textuais e audiovisuais disseminando insumos que fortalecem discussões transversais, como transgeneridade, redução de danos associado ao uso de drogas, raça, sexualidade, classe e gênero.  

Ao longo de um processo de pesquisa conduzido durante a pandemia, realizamos formações que fortaleceram ações de pesquisa e advocacy junto ao trabalho desenvolvido por cada organização participante deste projeto (leia-se a Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas – INNPD, e a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas – RENFA). 

A Escola Nacional de Gênero e Sexualidade tem como objetivo central a construção da contranarrativa à ofensiva antigênero, fornecendo ferramentas de formação e disseminação de informações, narrativas e fontes de pesquisa para o enfrentamento do conjunto de retrocessos que impactaram essas pautas nos últimos anos, principalmente sobre a bandeira de ataque à denominada “ideologia de gênero”.

“Ideologia de gênero” é a expressão depreciativa usada pelo conjunto de setores conservadores internacionais contrários às discussões relacionadas a pautas LGBTQIA+ e de Direitos Humanos, voltadas para o debate sobre equidade de gênero, sexualidade e direitos reprodutivos. Estes setores vêm desenvolvendo estratégias de fomento às discussões junto à opinião pública, para criação de base ideológica que sustenta as medidas dos poderes legislativo e executivo contrárias a pautas supramencionadas, configurando um retrocesso às conquistas consolidadas nessas agendas.

Em 2012, quando da apresentação do projeto Escola Sem Homofobia, financiado pelo Governo Federal e que visava promover a aceitação e a inclusão de debates sobre diversidade sexual no ensino médio, a pressão da Frente Parlamentar Evangélica, que apelidou o material didático de “kit gay”, fez com que a ação fosse vetada pela então presidente Dilma Rousseff. Após essa vitória dos conservadores, uma verdadeira guerra às expressões de gênero, aos direitos, movimentos e até mesmo às pessoas LGBTQIA+ e feministas foi impetrada no país. Seguiu-se a isto a retirada dos trechos que tratavam da questão de gênero e de orientação sexual do Plano Nacional da Educação e na BNCC (Base Nacional Curricular Comum).

O movimento de desqualificação dessas pautas envolveu a criação de uma indústria de comunicação em massa para disseminação de fake news, que concentrou as atenções das pautas políticas em pautas morais, produzindo uma distração que escondeu o reordenamento do orçamento público, a diminuição dos investimentos em políticas garantidoras de direitos e o mar de corrupção e ilegalidades que pairam sobre o atual governo federal. Além de deslocar as atenções da opinião pública para o centro político de uma guerra ideológica, essa estratégia elevou a violência dirigida a esses grupos, demonstrando o enorme desafio de pacificação em pautas profundas que atravessam episódios anteriores da constituição histórica da sociedade brasileira.

O  argumento de que essa “ideologia” faria parte de um plano mundial para destruir o modelo de família cristã e a heterocissexualidade chegou ao Brasil com imensa força a partir da discussão sobre currículo escolar na pauta da educação, consolidando um campo de ação mantenedor do conservadorismo em espaços de poder como o Executivo Federal, o Legislativo e o Judiciário, movimento que influenciou nas discussões das eleições de 2018 e que se fortalece após a vitória do conjunto dessas forças nesse pleito.

Esta disputa de narrativas e a utilização do termo “ideologia de gênero” têm provocado e mantido inúmeras violências contra a população de mulheres e LGBTI+. De acordo com o “Relatório de Assassinatos” produzido pela ANTRA, no ano de 2020, houve pelo menos 175 assassinatos de pessoas trans, sendo todas travestis e mulheres transexuais. Ainda segundo o relatório, é importante ressaltar que a média dos anos considerados nesta pesquisa (2008 a 2020) é de 122,5 assassinatos/ano; 43,5% acima da média de assassinatos em números absolutos da população geral.

Compartilhamos neste relatório o esforço de construção de uma pesquisa executada por ativistas da ANTRA, da Iniciativa Negra e da RENFA no sentido de reunir respostas a um contexto permeado por tantos ataques aos direitos das mulheres, das pessoas LGBTQIA+ e das pessoas que usam drogas. Situamos o nosso saber nos aprendizados organizados a partir do fazer da luta diária, reunindo elementos que permitam um diagnóstico do que tem acontecido no país sobre as pautas analisadas. 

Iniciamos com um panorama geral sobre o debate que girou em torno da criação do conceito de “ideologia de gênero”, traçando um caminho a partir de outras pesquisas para situar tal termo no conjunto da reformulação e politização do campo  fundamentalista religioso no país — o que resultou no retrocesso de agendas e pautas dos movimentos de mulheres, LGBTQIA+, de direitos humanos e de pessoas que usam drogas. Neste caminho, vamos entender como a ofensiva antigênero no contexto local desencadeou uma fissura na democracia brasileira.

A criminalização dos movimentos sociais e a falta de investimentos têm imputado dificuldade de construir relações de diálogos possíveis que possam enfrentar esta política de morte e contestar as mentiras perpetradas por este governo. Sobretudo porque os quadros técnico políticos que estão nos espaços do Poder Executivo atuam pela implementação dessa agenda ideológica conservadora como fator orientador do desenvolvimento de políticas, desconsiderando os insumos produzidos por setores que não corroboram esse movimento. 

O projeto que subsidia este relatório propõe-se a servir como fonte de pesquisa e informação de narrativas outras que incluam a perspectiva de gênero na promoção da igualdade e incentivem a criação de relacionamentos respeitosos e equitativos que impactem nos esforços da autonomia de mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, sobretudo negras e usuárias de drogas.

Observamos que no atual contexto brasileiro, a estruturação de uma “guerra às drogas” vem substituindo a lógica de cuidado e a oferta de serviços de cuidado em liberdade em uma perspectiva integrada ao fortalecimento e à garantia de direitos, resultando em um redirecionamento político e orçamentário que culminou no desmonte da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), preconizando a construção de uma rede de cuidado alicerçada em internações para tratamentos em dispositivos como Comunidades Terapêuticas monopolizadas por grupos religiosos liderados por setores evangélicos e católicos. 

Outra medida que revela a disposição autoritária do atual governo envolve um conjunto de medidas de enfraquecimento a partir de mudanças substanciais junto aos Conselhos de Participação Social, órgãos vinculados aos poderes para monitoramento e proposição de políticas que contavam com forte participação da sociedade civil organizada. A partir da mudança realizada via decretos que modificaram a composição desses dispositivos, do esvaziamento da participação dos poderes nesses espaços e da retirada de orçamentos destinados à promoção da participação social, o Poder Executivo interdita o diálogo com os setores historicamente organizados nas pautas, privilegiando o diálogo e desenvolvimento de parcerias com atores ideologicamente alinhados às agendas do atual governo. 

Se, por um lado, o avanço da luta das mulheres e dos movimentos negro e LGBTQIA+ resultou na implementação de políticas públicas que levam em consideração a especificidade das vivências elaboradas através de amplos processos democráticos, a resposta conservadora tem se especializado na disputa de narrativas e de espaços institucionais do Estado em nossa sociedade, caracterizando-se pelo esvaziamento das políticas públicas de garantia de direitos. Em termos concretos, estamos vivendo a retirada dos nossos direitos a partir de um conjunto de ações políticas organizadas por um setor conservador, ancoradas nos ataques às políticas de gênero, a partir da formulação de uma suposta “ideologia de gênero”.   

Além de contribuir para o registro deste período histórico, compartilhamos neste documento análises de toda a documentação reunida, além de fornecer elementos analíticos  para a compreensão do atual momento de retrocesso democrático. Assim, visamos disseminar informações de maneira estratégica entre ativistas dos direitos humanos, que têm produzido uma militância de base com relação a esses temas em territórios brasileiros de atuação das três organizações que compõem esta proposta. Buscando fortalecer o campo social a partir de espaços formativos para produção de informações qualificadas frente a avalanche de desinformação produzida pela indústria de fake news que desestabiliza a atual democracia.

Esta pesquisa foi realizada com a finalidade de apresentar o que vivemos em nosso país a partir da articulação de uma ofensiva antigênero, quais caminhos conseguimos mapear, quais atores se colocaram na disputa e quais alianças tornaram possíveis o atual contexto de retrocessos em nossas pautas. Quais desafios nos esperam? Como fortalecer o Estado e as políticas públicas de acesso a direitos? Como produzir respostas coletivas a esse conjunto de retrocessos? Estas são questões que pretendemos responder juntes neste relatório que convida ao diálogo, mas também é o compartilhamento de ferramentas e estratégias de luta.

Para tanto, trazemos aqui um balanço das políticas para mulheres e pessoas LGBTQIA+, com base na análise dos três últimos anos de articulações no governo federal e no Congresso Nacional, tendo em vista a operação transnacional da ofensiva antigênero com repercussão no debate em torno do conceito de “ideologia de gênero”. Não pretende ser uma análise exaustiva — pois certamente há muito mais a examinar no contexto brasileiro —, mas consideramos que o que reunimos foi o suficiente e relevante para os propósitos do projeto.


1. Os dados levantados para a pesquisa estão registrados no intervalo de 2018 a 2021, porém materiais que corroboram a análise da conjuntura e fundamentação do Relatório datam desde 2012.

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