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Reflexões históricas sobre a geopolítica dos ataques a gênero, sexualidade e direitos humanos
Nesta seção, realizaremos uma contextualização, em uma perspectiva histórica, da trajetória dos ataques aos direitos das mulheres e pessoas LGBTQIA+. Aportamo-nos em estudos recentes, sobretudo os coordenados por Correia (2021), que teve como objetivo realizar um aprofundamento das raízes históricas dos ataques antigênero em nosso continente. Não pretendemos nos aprofundar demasiadamente neste tópico, pois entendemos que estudos anteriores já realizaram o trabalho de mapear a geopolítica dos ataques a gênero em esfera global, mas consideramos importante apresentar alguns elementos para contextualizar quem nos lê.
Ao traçar a trajetória dos ataques às políticas de gênero e sexualidade, não por acaso, deparamo-nos também com a trajetória da movimentação política conservadora e religiosa, que tem articulado em diversos países da América Latina e Caribe uma forte investida e uma disputa nas noções de direitos das mulheres, diversidade, família e cuidados. Enquanto ativistas de direitos humanos, mulheres cis, trans e travestis, temos presenciado a retirada de nossos direitos e de conquistas históricas por um setor conservador e fundamentalista religioso que tem atuado em um ativismo em territórios empobrecidos e, sobretudo, destacamos uma forte atuação nas instâncias institucionais, no governo federal, governos estaduais e municipais e no Congresso Nacional.
Corrêa (2018) definiu a origem da “ideologia de gênero” como “problema de gênero do Vaticano”, situando historicamente o surgimento das ofensivas antigênero a partir de uma operação que tem igrejas católicas e evangélicas como pontos fundamentais para o surgimento e desenvolvimento desta ofensiva. Este problema posto pelo Vaticano ganha notoriedade durante a quarta Conferência Mundial das Mulheres, em Beijing. O episódio foi uma reação tardia da Igreja à adoção do conceito de gênero no documento final da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo, que acontecera seis meses antes (Junqueira, 2018).
A criação da suposta “ideologia” parte da disputa em torno do conceito de gênero que, para a Igreja Católica, deve significar necessariamente sexo biológico. Tal argumento se constitui como um ataque ao desenvolvimento das teorias feministas que refutam a ideia de que gênero significa sexo biológico e inserem o conceito na esfera social, sendo culturalmente construído. A filósofa Judith Butler, pensadora feminista que dedica-se à temática, tem sofrido ataques, no Brasil e no mundo, de ativistas católicos, evangélicos e de ultradireita aliados no propósito de combater a suposta “ideologia de gênero”.
A Igreja Católica e sua representação máxima no Vaticano foram responsáveis pela criação de estudos, pesquisas, notas técnicas, articulações com a mídia, e toda uma sorte de materiais que tinham a função de negar o conceito de gênero, tal como estava sendo empregado para significar igualdade entre homens e mulheres, destituindo assim a diferença sexual “natural” que é entendida como dimensão eminentemente humana na concepção católica ortodoxa. Para além de um conceito, a suposta “ideologia de gênero” é um dispositivo, no sentido foucaultiano do termo, pois se refere aos vários mecanismos institucionais, físicos, administrativos e de estruturas de conhecimento que potencializam e mantêm o exercício do poder dentro do corpo social. Segundo Foucault (2000), dispositivo é:
Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos.
(Foucault, 2000, p. 244)
Portanto, as iniciativas e ações mobilizadas pelos setores descritos, nomeadas de “ideologia de gênero”, como um dispositivo foucaultiano, mobiliza articulações para a manutenção de uma estrutura de poder em nossa sociedade. Essa estrutura de poder está ligada ao pensamento mais ortodoxo da Igreja, com as concepções definidas com relação ao papel da mulher, da sexualidade, da reprodução, da família e de suas respectivas funções designadas por um Deus. É um dispositivo que tem operado contra estratégias de emancipação feminina e que luta contra todas as teorias e formas de ativismo que refutam a maneira de se entender gênero, sexualidade, reprodução e família a partir da doutrina da Igreja Católica.
As políticas antigênero podem ser definidas como um conjunto de iniciativas cujo objetivo central é o ataque ao conceito político de gênero, construído pelos movimentos sociais com a finalidade de denunciar desigualdades postas no nosso país no que se refere a gênero e sexualidade. Longe de ser um advento brasileiro, Correia (2021) procede a uma exaustiva investigação de mapeamento das investidas antigênero no nosso continente, traçando uma linha do tempo que remonta toda a operação iniciada pelo Vaticano e incorporada como projeto político por setores religiosos católicos e evangélicos e que tem afetado de maneira profunda as democracias latino-americanas.
Segundo Arguedas (2020), ao pensar os Estados nacionais latino-americanos, é importante pensar nas dinâmicas coloniais e pós-coloniais, nas quais a estrutura do poder religioso (da Igreja Católica) esteve sempre presente desde a constituição dos Estados e das políticas públicas. O elemento mais contemporâneo seria a politização do evangelismo com força total nas estruturas de Estado e na constituição da nossa democracia.
Arguedas (2020) nos explica que, para além de uma investida antigênero ou antidireitos, estamos diante de um movimento arquitetado, de base neointegrista católico, que produziu uma aliança com o fundamentalismo neopentecostal. Essa aliança, segundo a autora, é extremamente funcional ao modelo econômico neoliberal. Essa é uma das chaves centrais para o entendimento do avanço de grupos ultradireita em nosso continente e principalmente no Brasil.O objetivo prioritário deste grupo conservador, religioso e neoliberal que tem utilizado da retórica da suposta “ideologia de gênero” é tomar o Estado e suas instituições, via processos da democracia formal (eleições), e transformar os valores dentro do Estado (Arguedas, 2020). Esses atores se aproveitam do discurso de enfraquecimento do Estado nas suas funções de executor da política pública, e, no Brasil, têm estado profundamente ligados com as dinâmicas de “desdemocratização” e da ascensão do bolsonarismo.
2. Género & Política en América Latina (G&PAL). (s. f.). Políticas antigénero en América Latina: estudios de caso. Sexuality Policy Watch. https://sxpolitics.org/GPAL/
3. CORREIA, Sônia. A “política do gênero”: um comentário genealógico. Cadernos Pagu. Campinas, n. 53, jun. 2018.
4. Disponível em: https://www.cfemea.org.br/images/stories/colecaofemea/jornalfemea032.pdf
5. JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Psicologia Política, São Paulo, v. 18, n. 43, p. 449-502, 2018.
6. FOUCAULT, Michel. Sobre a História da sexualidade. In: _____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000. p. 243–27.
7. ARGUEDAS, Gabriela. «Ideología de género», lo «post-secular», el fundamentalismo neopentecostal y el neointegrismo católico: La vocación antidemocrática. En: Corrëa, Sonia (ed.). Políticas antigénero en América Latina: Estudios de caso (pp. 11-35). Río de Janeiro: Observatorio de Sexualidad y Política, 2020.